Escalpo - .I.

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Surgido em uma São Paulo de 2020, no auge da pandemia do Coronavírus, o quarteto Escalpo nasceu já com a proposta de produzir um cru e intenso metal punk. Com isso em mente, ele coleciona um EP em sua discografia e, agora, anuncia seu primeiro disco de estúdio. Intitulado .I., o material sucede Retrocedendo, extended play de estreia.


O som agudo, quase estridente da distorção, preenche o espaço com um artificial e manipulativo dulçor, como uma luz solar de calor amornado surgindo por trás das montanhas oferecendo um ilusório senso de paz em meio a conflitos armados. Entre explosões súbitas e de acidez penetrante vinda das guitarras de Allisson Big Bull e Thiago Franzin, o tilintar da cúpula do prato de condução de Jean Novaes surge como sinos sonorizando um evento fúnebre. Sem demora, aquilo que poderia ser degustado de maneira paulatina se torna um único som. Rápido, ácido, cru. Desesperado. Tão desesperado que não é possível entender com clareza o que está sendo proferido por Neri Orleone, apenas deixando o ouvinte identificar seu timbre gutural e rasgado, mas que, no fundo, tem uma essência branda. Entre seus rugidos, Orleone faz de Onda De Estupidez, uma música que retrata a vitória de um governante umbralino em um país que, viu-se, falsamente seguia o caminho da igualdade e do respeito. Vociferando que, quando a consciência das escolhas feitas chegar, não haverá salvação, Onda De Estupidez é o recado de que, em meio a hipocrisia, a justiça há de chegar. Tudo sobre as vestes de um viril e propositadamente atordoante hardcore-stoner-noise.


A guitarra base surge em uivos cínicos, de olhares cerrados banhados por sangue pisado. Na entrada da guitarra solo, porém, a melodia deixa visível a silhueta daquilo que antes era uma figurativa agressão. Metalizada, mas ainda mantendo o chiado estridente ao modo lo-fi, Olhando Pro Chão foge daquele barulho ensurdecedor e de caráter rechaçante para assumir uma forma curiosamente mais comercial. No entanto, a batida em 4x4 se esvai como uma brisa no entardecer. Reassumindo a rapidez, a melodia se percebe entre sonoridades trotantes que apresentam uma mistura de thrash metal e metal em Olhando Pro Chão, uma faixa curta de duração, mas que traz ainda mais intensidade com o uso abusivo de bumbos duplos e um Orleone assumindo timbres dilacerantes e lancinantes que, sem esforço, comunicam seu tom de urgência em um enredo que bebe da mesma fonte de Onda De Estupidez. Trazendo o contexto de vida do terceiro mundo como um cenário abandonado, esquecido pelo desenvolvimento econômico, mas também moral, Olhando Pro Chão é a submissão. É a manipulação. É a estupidez de, em meio ao hipnotismo de um falso religioso, crer estar fazendo a diferença, mas, na verdade, estar promovendo que o mesmo erro e as mesmas ações governamentais se alastrem por mais tempo. 


Com uma levada hardcore de base punk, o novo alvorecer se apresenta com uma curiosa dramaticidade em meio ao seu minimizar de aspereza e crueza. Soando até mesmo mais melódica, pode se dizer que Eviscerando O Opressor tenha mesmo essa proposta. Com um lirismo mais decifrável a partir de um timbre mais grave oferecido por Bruno Santana em seu revesamento com Orleone, a faixa traz linhas melódicas que, além de fazer o ouvinte relembrar a estética de nomes como Rise Against, se reutiliza da urgência em versos de ordem e desejos por justiça. Incitando, como chamas ardentes e trovões ensurdecedores, o anarquismo, Eviscerando O Opressor é simplesmente a resistência perante um governo autoritário, intolerante e condescendentemente mergulhado em um estado senil de fome de poder como forma de esconder a negação de sua própria rejeição congressista.


De início semelhante àquele de Onda De Estupidez, o novo amanhecer consegue ser ainda mais cru, ácido, estridente e com extras pitadas de azedume. Com esses ingredientes, soma-se à receita uma levada mais atraente às massas. Curiosamente, a canção traz um ar sombrio penetrante que refresca na mente do ouvinte o estilo de composição de Marilyn Manson, fator que se mantém durante toda a execução de Desconstrução / Destruição, mesmo emaranhado entre acidez, crueza e aspereza de forma a trazer ligeiras influências do Inocentes. Como um levante de estética que chama o público para si, a canção tem uma estrutura perfeitamente indicada para ser apresentada ao vivo para criar um clima de revolução e rebelião popular. Não por menos, seu enredo aborda um estado social sem horizonte de esperança, mudança ou apoio, o que se soma ainda mais ao caráter noturno e angustiado que transpira da soma de rock alternativo, metal alternativo e raspas de avant-garde metal. 


Entre os trovões cujo som ecoa pelas planícies, o canto dos pássaros dão leveza e toques de dulçor àquilo que parece ser um prelúdio entorpecido do caos. O violão que surge em seguida, com seus dedilhares graves, faz com que o ouvinte mergulhe em uma atmosfera folk céltica que, por pouco mais de um minuto, lhe oferece a oportunidade de lembrar que existe beleza em meio à desarmonia social. É fato que ela está escondida por entre os escombros, mas ela está ali para lembrar que sempre há pelo que lutar. E Unnus é, na forma de um interlúdio, essa lembrança que acalenta o coração e dá ainda mais força pela conquista de liberdade, justiça e respeito.


Saindo da bonança, o caos é reinstaurado. Com a mesma brutalidade, rapidez e rispidez, o Escalpo reafirma seu hardcore-punk-stoner com uma base suja e visceral. Com uma brutalidade ardente entre os grunhidos guturais e uma voz de timbre limpo, mas adornado por azedume, A Dor Do Açoite traz um desespero incandescente que transpira de cada sonoridade como um grito suplicante por ajuda para se libertar da manipulação exercida pelos mais fortes, aqui trazidos como aqueles de mais poder. Infiltrando o ouvinte em um cenário ausente de liberdade de expressão, A Dor Do Açoite, ainda, é uma crítica ao consumismo ao mesmo tempo em que traz a pureza como fragilidade em um ambiente carniceira mente dominado pela fome de comando.


Bruta, sombria e cortante como uma navalha abrindo fendas pela pele, Escravidão Auto Imposta é outra canção de .I. que, assim como Unnus, tem rápida duração. Porém, diferente da segunda, a primeira vem com a receita padrão do grupo: urgência e rechaço. Ainda, em sua receita existem avisos imediatos para que o ouvinte saia de seu transe comodista e enxergue as práticas exercidas por uma prole capitalista temente ao lucro e ao poder que impõe a ganância e julga seus subordinados.


Entre a aspereza e o chiado sujo proveniente da bateria, mais uma vez o baixo, com sua estridência encorpada, é perfeitamente audível na base melódica oferecendo embasamento e consistência à instrumentação. Curiosamente, tal como aconteceu com as faixas Olhando Pro Chão e Desconstrução / Destruição, a estrutura rítmica aqui desenhada oferece um aspecto mais brando, mesmo envolto em rigidez, conferindo uma melhor degustação de seus sonares. Com notas sombrias, o hardcore oferecido em Retrocedendo é áspero e narrado por um timbre tão rouco que o que sobressai é apenas o rasgo das pronúncias verbais. É assim que o Escalpo escolheu para descrever seu inconformismo regozijante perante a figura de um indivíduo limitado de consciência, mas cuja força manipulativa o fez conseguir denegrir os indígenas, menosprezar a Amazônia e ridicularizar uma crise global de saúde pública.


Dramática e chorosa, mas também lancinante e faiscante, A Queda Do Céu, logo em seu despertar, apresenta um cenário apocalíptico, caótico, sem volta. Enquanto a chuva ácida queima o solo banhado por uma escuridão tenebrosa, Orleone surge como um narrador onipresente, com sua voz grave e empostada. Com essa estrutura, A Queda Do Céu se prova tal como a leitura de uma passagem religiosa. O recorte de um momento presente irrevogável que é adornado por uma trilha sonora linear, mas capaz de fornecer o lancinante e o sofrimento em meio a uma história real de descobrimento. Um descobrimento que, junto, trouxe a dor, a morte e o sofrimento. A Queda Do Céu é a mera dissecação da exploração dos europeus em terras brasileiras. É a exibição da tortura, da escravidão, da impunidade, da intolerância religiosa, do personalismo. Apesar de trazer um recorte de um passado não muito remoto, a exploração dos filhos da terra ainda persiste. E esse é o grande aviso de A Queda Do Céu.


Com um baixo de sonar tão estridente que passa a ser incendiário, a introdução traz rompantes chamuscantes em meio ao compasso trotante da bateria até que, após os punchs, um grito rouco, rasgado e bravado instaura o caos. Áspera, azeda, rápida e lancinante, Desumanização surge trazendo o último respiro de infelicidade perante outro contexto social. Embebida em um desesperado e alucinante instrumental, com direito a um solo tão elétrico que soa descompassado, Desumanização é como uma continuação linear de A Queda Do Céu, pois segue com um enredo rechaçantes às práticas de um povo dominante sobre um povo dominado. É a força da inteligência e de recursos contra a força do respeito, da adoração, da gratidão e da bondade. 


Inapetente, regozijante, nauseante. .I. é um produto tão severo, descarado, intenso e urgentemente rechaçante que causa grandiosos e propositais desconfortos aos ouvintes mais sensíveis. E não é pra menos. O álbum transpira uma crueza ácida, áspera, estridente e incandescente que, além de parecer dissonante, é desesperadora, claustrofóbica e ensandecida.


Essa foi a promessa do Escalpo desde o dia em que foi fundado: dar vida a um som cru e intenso. A partir dessa base, o quarteto paulistano usou e abusou da experimentação de texturas, energias e fusões estéticas de forma a fazer com que o barulho fosse o vociferar da insatisfação e um ensurdecedor grito de basta.


Exprimindo os posicionamentos do grupo em relação à política e aos contextos sociais e humanitários, o álbum sangra, queima e derrete a cada riff áspero, levada explosiva ou groove estridente. Ele externiza toda a absurdez existente em um país com grande potencial de grandeza, mas que foi governado por um indivíduo tão fraco de espírito, porém tão sagaz na arte da manipulação, que fez com que a escória da população tomasse impulso para se revelar e viver livremente sem represálias.


Esse foi o ponto da estagnação e queda do desenvolvimento social brasileiro. A exclusão do crescimento da empatia, do positivismo e da assertividade. E foi o que incentivou o Escalpo na composição desse que é um álbum inquieto e embriagado em uma tristeza profunda, uma decepção que não cabe em palavras, mas pode ser extravasada por meio de melodias.


Nesse aspecto, .I. contou com Franco Torrezam na mixagem. Com a destreza do profissional, o álbum transmitiu toda sua agressividade, intensidade, virilidade e insanidade por meio de subgêneros como hardcore, stoner rock, noise rock, avant-garde metal, punk, lo-fi e thrash metal. Ainda assim, mesmo que o álbum pedisse por um  tom intenso e impulsivo, o que foi devidamente respeitado, são raras as faixas em que o ouvinte compreende com clareza aquilo que está sendo pronunciado pelo vocalista, dificultando a compreensão do enredo lírico.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por CVSPE, ela é mórbida, carniceira. Trazendo um indivíduo em situação tal como se tivesse acabo de ser banhado por uma chuva ácida, seus olhos se encontram tampados por um pano que comunica uma prática de tortura. De boa aberta, em pose de gritos tão altos que chegam a ser mudos, esse mesmo personagem morto-vivo chora, sofre e suplica pelo fim de um caos longe de terminar.


Lançado em 03 de outubro de 2023 via Thrash Out Records, .I. é cru, incandescente, flamejante, sangrento, bruto e ácido. Explorando verdades que, para muitos, são de um segredo hipócrita, o álbum é intenso em seu desespero angustiante e urgente perante cenários de tão pura absurdez que chegam a ser irreais. Não por menos que o Escalpo se utilizou até mesmo do nome do álbum para apontar o dedo para toda a injustiça e insalubridade governamental que transborda o Brasil de chorumes tão grossos que precisarão de muito braço para serem completamente descartados.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.