Zhorhann - Ainsi Parlait Hominina

NOTA DO CRÍTICO
Nota do Público 5 (1 Votos)

Ele é uma espécie de filho, uma feliz e agradável consequência do La Théorie Des Cordes. Zhorhann, um projeto francês nomeado em referência à equação Zoran retirada do livro La Nuit De Temps, de René Barjavel, escolheu o fim do terceiro trimestre para anunciar Ainsi Parlait Hominina, seu álbum de estreia.


Ela não tem timidez. Como alguém querendo impor sua vontade, a melodia chega com o pé no peito embebida por uma força, uma pressão e uma precisão que a tornam potente em sua aspereza suja e ácida protagonizada pela dupla entre a bateria de Heiva Arnal e a guitarra de Mathieu Torres. Entre o grunge e o flerte com os campos do nu metal e do avant-garde metal, a canção surpreende por apresentar uma brusca quebra rítmica que leva o ouvinte para um ambiente tranquilo e suave. Agora sob as vestes do jazz, a frase que surge como um oásis em meio ao caos traz a corpulência swingada do baixo de Vincent Blandeau como estrela. É interessante notar que, em L’Homme À La Tête De Gelute, os vaivéns entre o atordoante e o torpor fazem uma representação a uma espécie de lúdico abestalhado. É como se a futilidade, a superficialidade e a máxima falta de capacidade de opinião se fundissem na mente de um indivíduo cuja essência é vazia, influenciável e infantil. Com menções ainda a uma espécie de rock progressivo agonizante, L’Homme À La Tête De Gelute é marcante pelo emprego de bumbos duplos em rompantes heavy metals embriagados em guitarras de gritos extasiantes de hard rock. É inevitável, porém, a percepção de que o rebolar de provocação despropositada da guitarra com, seu tom hipnótico tal como se fosse pronunciado por encantadores de serpente, oferece a ideia de manipulação, algo que permeia todas as subdivisões melódicas da canção, que se encerra como na forma de um palíndromo melódico.


De tom cômico, leve e contagiante, o violão leva o ouvinte para um ambiente suave e ensolarado com direito a uma guitarra sorridente e rebolante, tal como se estivesse no embalo de ritmos dançantes como a salsa ou o frevo. Com a presença do chiar do chocalho como único elemento audível em primeiro plano sob a responsabilidade de inserir texturas rítmicas à melodia, Le Filleuls Ancestraux - Partie 1 possui o lo-fi como gênero fundido na receita sonora ao lado do blues transfigurado em virtuosismos progressivos. Com rompantes de uma brutal mistura entre metalcore e um heavy metal de verves violentas que chega a pisar na divisa com o thrash metal, Le Filleuls Ancestraux - Partie 1 é contagiante em sua base latina que ainda tem capacidade de beber da água do jazz enquanto parece dialogar sobre legado, sobre evolução. Sobre o ontem sendo usado, comportado e propagado no hoje.


Difícil não enxergar Rush ou Sons Of Apollo. É virtuosismo com um toque de sombrio. Aqui é onde as pedras cantam e a escuridão se embriaga em um curioso tom azul espectral. A guitarra é hipnótica em seu olhar profundo, intenso e penetrante, fazendo com que o baixo e a bateria, em suas funções de base, ficam apenas como coadjuvantes até segundo aviso. Eis que Arnal pronuncia, com um trotante, uníssono e seco golpe sistemático e simultâneo na caixa e no bumbo, o comunicado de uma quebra rítmica no enredo entorpecido. A partir daí, Intro (Si Si…) se torna um interlúdio sexy cuja sonoridade é quase como a fusão de Whole Lotta Love, single do Led Zeppelin, com War Pigs, single do Black Sabbath e o derradeiro instrumental final de White Bird (Bring Your Armies Against Me), single do Palace Of The King. Perigosa, sensual, selvagem e com altas doses de libido, Intro (Si Si…) acaba mostrando sua verdadeira face ao se transformar em um hard rock californiano de veias oitentistas, mas com influências europeias. Com direito a frases de uma áspera estridência, Intro (Si Si…) é a ausência do fôlego, é a impunidade, é a rebeldia, é a intolerância, o egoísmo. É o exagerado senso de vaidade e condescendência.


Desarmônico, dissonante. Caótico. Entre rugidos desafinados vindos da guitarra, uma brisa de sincronia rompe o atordoante e o agonizante. Sob as vestes de um pop punk noventista misturado com um debochado rock alternativo, Le Flamant Rose traz frases de jam session bem executadas e com protagonismo do baixo, enquanto a guitarra entra em um transe psicodélico que se transfigura em gozos progressivos. Le Flamant Rose, com sua estrutura de base anti-harmonia, metaforiza a metamorfose do homem. Uma metamorfose que imputa diversas interpretações, desde o amadurecimento à assumição de uma consciência confusa que o leva a uma crise existencial.


Sem delongas, ela começa reconstruindo a mesma melodia dos auges de Les Filleuls Ancestraux - Partie 1. Entre o compasso ensolarado, a acidez do progressivo em peles hard rocks, Les Filleuls Ancestraux - Partie 2 tem rompantes de uma hipnose mais agressiva que sua irmã mais velha. Mais metalizada e com versos de ar sensualmente mais sombrios, a canção surpreende o ouvinte ao conter raízes latinas do tango em meio ao seu denso aroma de estridência e acidez. Sem dificuldade, Les Filleuls Ancestraux - Partie 2 dá continuidade ao enredo de sua antecessora, misturando noções de legado, mas também de caos e pitadas de irresponsabilidade.


Seu início parece um fim. Aquele momento em que os músicos explodem em frases de punch para dar pressão e a sensação de dever cumprido para si e a noção de quero mais para o ouvinte. Porém, quando o baixo assume a dianteira com frases de um hard rock à la Sunset Strip dos anos 80, a guitarra surge entre agonias de êxtase enquanto flerta com o rock industrial. Capaz de misturar na receita até mesmo noções do hardcore, ela, com auxílio da bateria, deixa Egoduc precisa e de uma intensidade contagiante. Claro que, para surpreender, o Zhorhann faz uma espécie de pequenos medleys contendo recortes de frases reggaes e soft rocks que contrastam bem com a base industrial, estridente e ácida da canção. Com essa receita, Egoduc parece contrapor à cultura do ego, do personalismo, do senso exagerado de condescendência. Afinal, entre seus picos e suas depressões, a faixa contrapõe a necessidade do ser servido e a importância desmedida com o desapontamento e a decepção da não obediência.


O céu traz um ar noturno límpido. Não há nuvens, apenas a Lua intensa e pontos brilhantes espalhados pela imensidão escura. Assim, o soturno começa a tomar conta da energia transpirada pela melodia ainda em fase de construção, uma melodia desenhada, no momento da introdução, apenas por uma guitarra cabisbaixa e por tímidos tilintares do prato de condução ofertando visões do que pode vir a ser o ritmo da canção. Se tornando macia em sua sensualidade despropositada e serena, Sweet Acid explode em frases contidas em comparação aos punchs existentes nas canções anteriores, mas traz consigo uma doçura e uma sensibilidade cativantes que conseguem deixar o ácido no segundo plano. Ainda assim, a acidez é um ingrediente inevitável de ser sentido no paladar. Imerso em demasia nesse prato inteiramente progressivo, ele abrilhanta os ecos delirantes de um nascente rock industrial. 


Áspera e de uma intensidade impulsiva. Desde seu despertar trazendo infusões de thrash metal em seu ecossistema, a canção vem com uma agressividade tremula até então inexperienciada em Ainsi Parlait Hominina. Entre a guitarra base que vai mantendo o cenho raivosamente fechado e a guitarra solo agonizante, Dieu Sirote Le Sang tem seus oásis de torpor a partir de jam sessions de base jazz que suavizam o odioso. Com efeitos de fade out indicando o fechamento de incisos dentro de um mesmo capítulo, a canção mistura noções do stoner rock com uma dissonância progressiva que fluem para o ápice do caos. É onde o thrash metal de fato se revela. Se pronunciando entre rugidos ensanguentados, apesar de potente, ele é um subgênero de postura fraca na canção, sendo facilmente influenciado e hipnotizado pelos deleites do progressivo. Com momentos de total protagonismo do baixo estridente, Dieu Sirote Le Sang é definitivamente a música mais sombria e significativa do álbum, pois coloca a figura da máxima divindade consumindo a vida num ato de canibalismo disforme. Sua melodia, suas súplicas, seus gozos e seus gritos são simplesmente o som do caos e da desordem se instaurando entre os homens ausentes de razão, noção e respeito. É o som do instinto, da vontade, da cegueira do ódio e da raiva. E nada mais.


É uma espécie de bíblia utópica. Um livro de leis e análises de comportamento que codifica toda a nova cultura do homem. Ainsi Parlait Hominina é o ontem, o hoje e o amanhã juntos em um diálogo não verbalizado, mas cujas sensibilidades que transbordam de cada esquina melódica são capazes de ditar o caminho do homem na realidade moderna.


Com o álbum, Zhorhann propõe ao ouvinte olhar para si e para seus iguais espalhados pelos diferentes circuitos sociais. Os questionamentos quem sou eu, onde estou e para onde vou perdem definitivamente seu valor quando colocado em um contexto em que a profundidade das avaliações supera a consciência, a razão e a moral.


É difícil, portanto, não se perder em si mesmo, nas descobertas de seus próprios atos e na percepção de suas impurezas transfiguradas em normalidades sociais. Isso é o homem. Isso é um indivíduo pensante dentro de uma comunidade de igual capacidade de raciocínio. No álbum, a manipulação, a raiva, o ódio, o gozo, os desejos, a sabedoria e o instinto estão interligados por um só cordão, o da essência.


Por isso, Ainsi Parlait Hominina põe em xeque até mesmo a fé e seus dogmas. Afinal, no último suspiro de pensamento, Zhorhann traz a vida sendo consumida e devastada por quem a criou. É uma clara metáfora não apenas à desistência, mas também à tristeza em relação ao que o homem passou a fazer e faz perante seu reino de interesses e manipulações.


Como um produto instrumental, portanto, cada nota, cada batuque, cada sonar é importante para verbalizar as emoções transpiradas pelo álbum. Hugo Lemercier fez com que guitarra, bateria e baixo fossem atores capazes de assumir diferentes personalidades com tamanha desenvoltura e versatilidade. Assim sendo, a trinca instrumental levou o álbum a cenários de avant-garde metal, jazz, grunge, heavy metal, soft rock, reggae, blues, thrash metal, metalcore, rock progressivo, hard rock, hardcore, rock industrial, pop punk, rock alternativo e stoner rock. Tudo com toques ácidos, estridentes e soturnos.


Fechando o escopo técnico vem a arte de capa. Assinada por Stéphanie Artaud, ela é, no mínimo, literal. Como o próprio álbum propõe um dialogar sobre a forma do homem viver, a artista evidenciou, como personagem central de seu quadro, uma figura que, pela multiplicidade de elementos em suas vestes, é um bobo da corte transvestido como soldado. Por meio de corpos, o ato da morte, chamas flamejantes e um céu noturno brilhante e exotérico, a obra de Stéphanie propõe uma rápida passada entre a agressividade, a impunidade, a fúria, a delicadeza e a serenidade do homem.


Lançado em 15 de setembro de 2023 via Luminol Records, Ainsi Parlait Hominina é o som da fala do homem em um virtuosismo instrumental. Sua soberania, sua relação com a evolução da espécie e sua inconstância são representadas com melodias intensas, profundas e destoantes que colocam em xeque a razão, a moral e, principalmente, o conceito da lógica do pensamento na era moderna.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.