Boneca Voo Doo - A Bizarra Viagem Entre Céu E Inferno

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Ele é arquitetado por músicas compostas quando os integrantes estavam entre as casas do 16 e 17 anos. Porém, todos os seus títulos foram, de certa forma, repaginados para adquirir uma postura mais madura, desde os conteúdos líricos aos sonoros. Inclusive, sua produção recebeu mais atenção do que aquela depositada em seu antecessor. A Bizarra Viagem Entre Céu E Inferno é o segundo álbum de estúdio do Boneca Voo Doo e que possui, da banda, muito orgulho.


O som é ambiente. Entre o ronco do motor da moto e o tilintar do sino, o ouvinte se percebe em uma cidade interiorana tradicional aspirando um aroma profundamente bucólico. Gradativamente, porém, por meio do efeito fade in, um coro gutural de timbre azedo vai tomando a frente da sonoridade, incutindo, no cenário, um clima assustadoramente fantasmagórico, ainda que recaia em um viés levemente religioso. Depois do ricochetear dos pratos providenciar algo como um abrir de cortinas, a melodia começa a ser efetivamente moldada por uma guitarra que, no domínio de John Sebastiany, soa azeda em meio à sua postura, cínica, sorrateira e intimista. Transpirando um clima sombrio que traz consigo o suspense como algo que deixa o ouvinte em posição de alerta, o instrumento rapidamente recebe a companhia da camada lírica. Ocupada por uma voz de caráter gélido vindo também de Sebastiany, ela derrama sobre o cenário uma energia soturna, melancólica e até mesmo nociva. Nesse ínterim, é interessante perceber que, apesar do excesso de crueza que desemboca em torpor, a bateria de Daniel Schumann, ao ocupar seu posto com um andamento rítmico requebrado em uma cadência 3x4, fornece, ao mesmo tempo, fluidez e consistência, mas também boas gotas de drama. Surpreendentemente, quando o espectador já se percebe no imediato limiar entre a alucinação e a realidade, uma camada harmônica adocicadamente ácida levita pela atmosfera através do órgão dominado por Calil Souza, o que consagra Olhares como uma obra de espectro gótico. Uma obra que exorta uma crítica ferrenha não apenas à manipulação religiosa, mas à cultura do julgamento e do conservadorismo. No momento em que o lado humano finalmente se mostra, a imagem santificada dos ditos beatos e puros se esvai como poeira carregada pelo vento.


Densidade é uma palavra que pode representar bem o despertar desse novo cenário. Ainda embebido no sombrio, ele é dominado por um baixo de groove grave, tremulante e nebuloso que, nas mãos de William Zavalhia, deposita uma robustez que serve como alicerce para o gradativo monarquismo da guitarra e seu riff ácido que entra em cena varrendo tudo o que se tem de calmaria. Momentos após o seu rompante, a canção mergulha em uma atmosfera trotante e compassiva nas métricas exatas do hardcore. Pulsante e suja, a faixa destaca o auxílio dos backing vocals na aquisição de uma nova camada harmônica para preencher os espaços restantes. Inclusive, eles são responsáveis por, ao lado do vocalista, a moldar, engrandecer e difundir uma dramaticidade quase lasciva que mergulha o ouvinte em um estado de caos entorpecente. Aonde Se Vai através desse arranjo impulsivo, que ainda conta com backing vocals de Filipe Santarini dramatizando o ecossistema com grande pungência, traz questionamentos angustiados que envolvem noções não necessariamente de fé, mas de crença. De acreditar. O medo e a insegurança de um fim sem propósito assusta, espanta e destaca a vulnerabilidade humana em relação ao inevitável. É por isso que o personagem lírico se apoia na busca por algo que o conforte e espante seus pavores em prol de algo em que lhe cabe, honestamente, simplesmente confiar. Não à toa que a figura de Deus surge abraçando sua crise existencial através de uma desenvoltura vocal ululante e de caráter interessantemente terno vindo de Vanessa Andara.


De uma chuva ácida inconsequente, a guitarra coloca o espectador em contato com um cenário bruto, sombrio e pegajoso. Junto a uma bateria de frases trotantes, mas que, curiosamente, evidenciam uma postura um tanto esquizofrênica, o instrumento é o responsável por manter uma linearidade estética e um falso senso de normalidade em meio a um ambiente enlouquecedor. Graças à interpretação lírica assumida por Sebastiany, em meio aos seus falsetes ausentes de consciência, a atmosfera adquire ares manicomiais conforme se explora um deboche desmedido. Entre rompantes brutos que envolvem até mesmo sobreposições vocais guturais e falseteadas, O Problema se configura como uma canção embebida em críticas políticas inerentes ao trato do planeta, mas não apenas. Aqui, o Boneca Voo Doo discute o sistema político e a posição do cidadão como peão dos feitos governistas. Ao mesmo tempo, se coloca em xeque a ausência de culpa dos governantes, a qual é passada de mão em mão apenas para limpar um nome e poder seguir cometendo os mesmos crimes sempre encobertos. Apesar de curta, O Problema exorta muito do descontentamento social, representando muito bem o embrionário estado de anomia.


Aqui não existe apenas densidade. A brutalidade domina o ecossistema de maneira anárquica, cirúrgica e visceral. Entre os compassos pulsantes da bateria, o baixo despeja seu azedume por um veio de água contaminada pela aspereza trovejante de uma guitarra embrionariamente ruidosa. Não é de se espantar, portanto, que a interpretação lírica acabe assumindo um contorno igualmente cru e ríspido. Em meio a um súbito de intensidade e potência, Gênesis 1:27 transita entre o gutural trevoso e o hardcore incisivo enquanto se deleita em um enredo lírico de dupla interpretação. Ao mesmo tempo que parece ser uma versão atualizada do respectivo versículo da Bíblia ao abordar o peso da inteligência artificial na transformação da cultura comportamental global, a faixa, sob o viés mais tradicional do livro, discute o lado reverso da criação. A maldade, a manipulação, o ódio, a rebeldia. O ímpeto personalista, o egoísmo e a insaciável sede de poder que regue os interesses governamentais são colocados, aqui, como o veneno da própria bondade e pureza divinas que, na ânsia de criar o espelho do divino, alcançou a antítese do perdão.


O surpreendente acontece logo no despertar desse novo cenário. Sensual, regionalista e enaltecendo a cultura musical nordestina de maneira solar, baixo e bateria se combinam em uma mesma sintonia swingada nos moldes mais puros do forró. Promovendo uma sonoridade sincopada, tal interação dá passagem para um instrumental que se torna levemente caótico enquanto parece levar o ouvinte para partes áridas do sertão. Se tornando denotativamente hipnótica graças ao riff manipulativamente valsante conquistado pela guitarra, a composição parece explorar uma vertente vanguardista ao estilo avant-garde metal com a inserção de linhas líricas dissonantes e desarmônicas no que tange um conceito tradicional e radiofônico de melodia e harmonia. Com isso, Ninar A Dois, com seu cenário alucinante, se mostra como um puro retrato da vivência dos efeitos de produtos entorpecentes. A brisa, aqui, leva o ouvinte a viver experiências que seu próprio mundo inconsciente desconhecem.


O avant-garde continua sua dominante excursão pelas estéticas adotadas pelas músicas de A Bizarra Viagem Entre Céu E Inferno. Aqui, ele vem ligeiramente mais caótico e mais dissonante em relação àquele explorado no título anterior. O que chama a atenção, porém, é o fato de que a balbúrdia explode, ritmicamente, em uma base percussiva calcada no xote, repetindo o feito aventureiro e regionalista de Ninar A Dois. Necessário pontuar, porém, que, ainda que soe intensa e impulsiva, a presente composição, no que tange a mixagem, parece ter sofrido um leve escorregão. Afinal, sua sonoridade soa ligeiramente distante, afugentando as verdadeiras potência e consistência. Ainda assim, com sua curta duração, Beijinhos mantém o intuito questionador, rebelde e contestador do Boneca Voo Doo apresentando um diálogo firme e enfático sobre a impunidade policial e seu respectivo abuso de poder no ímpeto de satisfazer seus desejos sórdidos de soberania perante os mais vulneráveis.


O hardcore entra em cena com sua forma mais pura e crua. Pulsante, agressivo, áspero e intenso, ele envereda para um ecossistema mais contido no que tange a instrumentação, mas não em relação aos oferecimentos sensoriais. Denso e sombrio, ele traz um viés lírico que, interpretado sob uma inclinação gutural, fornece um senso quase canibalesco em virtude de sua agressividade envolta em impunidade. Em Ump, não é apenas a rispidez que impressiona. Aqui, Schumann explora mais uma vez a sua versatilidade e incute, no compasso rítmico, o xaxado, durante os versos de ar, proporcionando quebras percussivas interessantes que tornam a música plural. A partir desse arranjo, Ump transpira certa insatisfação em relação ao mundo moderno em que o ser humano é escravo do trabalho e da rotina. Uma marionete que mantém o sistema sempre operante, mas cuja alma, infeliz, pede, frequentemente, por uma salvação vã propagandeada pela televisão. Em outras palavras, Ump destaca o quão frágil podem ser as motivações e os sonhos do indivíduo em um ecossistema socio-cultural sem perspectiva de melhora.


A guitarra explora uma introdução minimalista embrionariamente sinistra em meio ao seu sabor azedo. Favorecendo a criação de um ecossistema sombrio, o instrumento permite que o enredo lírico se desenvolva a ponto de o ouvinte se embriagar pela interessante e fantasmagórica sobreposição de vozes que o moldam. Marcada por uma bateria consistente e potente em sua desenvoltura quebrada, a canção mergulha em um caos de insatisfação embrenhado por um senso desmedido de decepção. É aí que o ouvinte se depara em um momento épico em que o drama encontra sensos como a melancolia, o medo, o desespero, o desencanto e um toque de angústia amarrados por uma valsa ardilosamente agoniada de um violino sedento por uma saída, uma escapatória de seus próprios temores. Mais do que em Olhares, Tribunal Do Céu explora a manipulação religiosa de uma maneira mais cirúrgica, questionando incisivamente o uso da fé como meio de alcançar desejos e feitorias enquanto se esnoba daqueles mais frágeis. Trazendo, a partir daí, um diálogo direto entre Deus e o pecador, Tribunal Do Céu nada mais indica do que o puro significado da lei da ação e reação.


Igualmente como o que aconteceu em O Problema, o feito de explorar um viés lírico-interpretativo enlouquecedor se repete. Se misturando entre diretrizes metalizadas e outras marcadas por incursões ligeiras ao brega, algo evidenciado pela sinergia atordoante entre bateria, baixo e teclado, ele é enaltecido, principalmente, pela interpretação lírica incomodamente debochada adquirida, novamente, por Sebastiany. Se embrenhando por uma vertente surpreendentemente épica, Santa Molestade, assim como os títulos Olhares, Gênesis 1:27 e Tribunal Do Céu, aborda a questão da religião e da fé. Porém, aqui o Boneca Voo Doo não se importa em chocar o ouvinte. Afinal, na presente faixa a banda discute a pedofilia na igreja, tema retratado com profundidade, inclusive, no longa-metragem Spotlight: Segredos Revelados. A partir daí, a banda discute, enfaticamente, a passividade das pessoas em relação às ausências de denúncias desse tipo de comportamento predatório. Às vezes motivado por uma capa que esconde a incredulidade. Às vezes, incentivado pelo medo de ser esmagado pelo poder dos mais fortes. O fato, porém, é a existência dessa prática no berço de um lugar que deveria prestar auxílio, proteção e meios de salvação.


O baixo, denso, firme e sorrateiro, puxa a introdução em meio a momentos súbitos de absoluto protagonismo. Quando acompanhado pelo ricochetear dos pratos e da distorção rasgando o restante do torpor, o instrumento assume a função de criar uma base consistente para uma desenvoltura rítmico-melódica dura e de uma intensidade não correspondida pelo trabalho de mixagem, o qual esbarra no mesmo escorregão de Ninar A Dois. Trevosa e raivosa em meio ao seu comportamento que beira a impiedade, Medo traz um propositado inconstante hardcore que flerta com o death metal em virtude da exploração de um azedume pegajoso. Surpreendentemente agraciada por um refrão baseado em uma levada rítmica tradicional 4x4, Medo soa esteticamente explosiva e inquieta conforme o lirismo explora, essencialmente, a ausência do temor em relação à morte, ao passo que o tempo de vida se aproxima, gradativamente, do fim. 


Talvez não tenha sido essa a intenção, talvez sim. O fato é que a sonoridade que desperta a presente composição consiste em uma crocância que remete ao movimento de dar corda a um objeto. Dele, uma melodia aguda e tilintante paira pela atmosfera como um processo de hipnotismo enganosamente aconchegante que é vociferado por uma voz delicada, aveludada, pura, ingênua e levemente rouca. Vinda de Davi Junges, ela assume uma forma fantasiosa de fragilidade, uma vez que esconde, com grande competência, a verdadeira essência do ser que dessa voz é possuinte. Ecoando das sombras de um ambiente pegajoso, esse timbre, em realidade, provém de um ser de formas abissais que assume o desenho daquilo de que o indivíduo mais teme. Não à toa que Do Escuro, apesar de ser a canção mais curta de A Bizarra Viagem Entre Céu E Inferno vem como um interlúdio que destaca não apenas a carência em sua forma mais visceral, mas salienta a necessidade humana por companhia como uma maneira de garantir o bem-estar através dos sensos de importância e querência. O escuro, aqui, simboliza o ponto visceral de como a solidão exorta o ponto máximo da insegurança existente dentro de cada pessoa, explorando, assim, como a sua negação pode ser nociva para o fortalecimento emocional.


Enquanto a bateria surge por entre pulsos em 4x4, é interessante perceber como a distorção da guitarra consegue, através de seu consistente e insistente ressoar, assumir uma forma semelhante ao canto da cigarra. A partir daí, tem-se a ideia do alvorecer de um dia ensolarado e, portanto, alegre e vivaz. No entanto, o que acontece é que a canção assume um caminho oposto ao explorar o assombro e o sombrio. Ritmicamente acústica, mas melodicamente dissonante, existe um certo desdobramento de uma atmosfera temerosa, cínica e traiçoeira que se percebe principalmente através da interpretação lírica assumida por Sebastiany. Afinal, ela traz a angústia como o último estágio da loucura motivada pelo excesso de medo. Enaltecida pela sobreposição caótica que molda a partícula lírica do refrão, esse sentimentalismo avesso faz de Papaie uma espécie de continuação linear de Medo e Do Escuro. Associada principalmente como uma segunda parte de sua música antecessora, a presente composição dá ainda mais destaque à solidão como combustível para a vivência angustiante da insegurança e, consequentemente, do medo. Adotando um estilo lírico que identifica o personagem como criança, ampliando o senso de pureza e ingenuidade, Papaie também mistura elementos religiosos ao explorar a ideia do anjo caído aquém do auxílio divino. 


A acidez da distorção da guitarra que preenche os primeiros sinais introdutórios da obra fazem com que o ouvinte experiencie uma paisagem um tanto redentora e, até, de certa forma, beatificante. Curiosamente, como já vem sendo a marca do Boneca Voo Doo, a composição explora outro caminho. O caminho do temor que, aqui, é estruturado através de um coro gutural de igreja. Explodindo em uma balbúrdia pulsante, suja, ríspida e áspera, a faixa não consegue conter a sua própria raiva e seu próprio senso de absurdez. De postura revoltada, a canção, assim como vários outros títulos do álbum, mistura estilos de cantos árabes com toques de avant-garde metal a ponto de criar uma atmosfera única. Incômoda e dissonante, Translúcidas Faces explora o assombroso em meio a mais um enredo que parece abordar o descontentamento em relação à religião, se aprofundando na ideia de manipulação e enganação das pessoas em ideias aparentemente sem fundamentos.


É possível dizer que o Boneca Voo Doo atingiu a maioridade com A Bizarra Viagem Entre Céu E Inferno. E o interessante é que a base lírica de suas canções foram escritas quando seus integrantes ainda nem tinham passado dos 17. Com um pouco de pó de perlimpimpim, o que aconteceu foi a obtenção de um trabalho que se comunica com exatidão, coesão e consistência. Entre a balbúrdia e a manipulação, a harmonia e a beatificação, o que o grupo apresenta é um material que caminha entre o céu e o inferno com uma honestidade cirúrgica.


Ao todo, são 13 faixas que trazem diversas visões de mundo em assuntos centrais que abordam questões sociais, políticas e, principalmente, religiosas. Explorando ideias inerentes ao absurdo a certos comportamentos sócio-culturais, noções que beiram a dúvida e o questionamento assíduo em relação ao aspecto da fé e até mesmo incursões mais reflexivas sobre a sociedade em sua forma mais genérica, o álbum tem, em si, a silhueta da rebeldia, os olhos da raiva e o pensamento do contrassenso.


Não existe um momento de pura paz. Um momento em que o horizonte oferece uma sincera paisagem de alegria, harmonia e esperança. Se isso acontece, é apenas uma forma de manipular o indivíduo para, em um súbito, prendê-lo em jaulas que incitam o pensamento crítico através de interpretações líricas teatrais que exploram o cinismo, o deboche e a falsa seriedade por um viés que chega a ser dramaturgicamente circense. Eis aqui a forma peculiar que o Boneca Voo Doo encontrou de ridicularizar tudo aquilo que não condiz com um aparente senso de normalidade saudável.


De todas as suas discussões propostas, é inquestionável a percepção que a religião é um tema que abrange grande parte de seus títulos direta ou indiretamente. E a prova disso está em Olhares, Gênesis 1:27, Tribunal Do Céu e Santa Molestade de forma direta, Papaie e Translúcidas Faces de forma indireta. Sem exceção, cada enredo lírico traz posicionamentos rascantes que, definitivamente, não se importam com a represália alheia. Afinal, esses títulos trazem muito da liberdade de pensamento a que os integrantes do grupo são possuintes.


Outro assunto que tem merecido destaque é o setor emocional. Medo, Do Escuro e também Papaie exploram, com um arranjo assombroso e denotativamente tenebroso, a ideia do medo, da insegurança e da vulnerabilidade como forma de escancarar a fragilidade do ser humano em relação ao seu próprio caráter emocional. Não apenas a baixa autoestima, mas o excesso de carência evidenciam o quanto as pessoas necessitam umas às outras para se sentirem completas, fortes e protegidas. 


Estruturalmente, A Bizarra Viagem Entre Céu E Inferno é um álbum que chama a atenção pela sua versatilidade rítmica. Ainda que, em sua esmagadora maioria, o álbum se deleite por paisagens sonoras que vão do hardcore a flertes pungentes com o death metal tanto quanto com o avant-garde metal, existem momentos em que ele se desprende por completo do ramo do rock.


É aqui que uma parabenização particular deve ser feita a Schumann. Afinal, o músico foi o responsável por criar bases rítmicas que, além de abraçar as regionalidades particulares de um Brasil nordestino, conseguiu mostrar que o rock é, sim, um gênero aberto a fusões estilísticas. E isso ficou extremamente claro em títulos como Ninar A Dois, Beijinhos e Ump, em que houve a inserção do forró, do xote e do xaxado.


No que tange a parte técnica, porém, o álbum acabou vivenciando aspectos não muito felizes. Afinal, de maneira geral, a mixagem executada por Souza deixou a desejar. Apesar de o profissional ter acertado em alguns títulos, em sua esmagadora maioria o álbum apresenta uma sonoridade fraca e distante, afastando, portanto, a sua pungência, densidade e potência. Faixas como Ninar A Dois e Medo confirmam com mais exatidão essa observação. 


Ainda assim, ao menos as nuances de estilo são possíveis de serem notadas, bem como o time instrumental, o qual foi responsável por desenhar uma viagem sônica que vai do xaxado ao avant-garde metal. Necessário pontuar que, cada canção, sempre explorou, de alguma forma, o caos, a agonia e o aterrorizante, quesitos que, definitivamente, marcaram os arranjos da track list.


Ainda que na mixagem não tenha sido muito feliz, na produção, por outro lado, Souza fez um bom trabalho. Ao lado da banda, o profissional conseguiu salientar a maturidade e o senso de autoconfiança que os integrantes possuem em exortar suas opiniões sem medo de represálias. De certa forma, cada tema abordado, por sorte ou não, é atemporal, auxiliando no fato de A Bizarra Viagem Entre Céu E Inferno se configurar como um trabalho atual.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Sebastiany, ela destaca a imagem de um cemitério feito em terreno árido. Destacando a cruz de um túmulo em específico, a paisagem é envolta em um céu de tons místicos com a presença, ao fundo, da abóbada de uma igreja com sua cruz no topo. O que salta aos olhos, porém, são as mãos saindo da terra como se desesperadamente pedissem por clemência, encapsulando os pontos liricamente abordados sobre religião. Tudo abraçado pelo nome do grupo sobrevoando o cenário como um anjo caído com asas de morcego em virtude de sua grafia disforme, ressaltando, assim, o sombrio.


Lançado em 15 de abril de 2022 de maneira independente, A Bizarra Viagem Entre Céu E Inferno é um material maduro, questionador e imponente. De natureza estética experimental, o álbum explora a dissonância, a balbúrdia e o tenebroso como forma de chamar a atenção para os absurdos que fazem da sociedade um covil de loucos. Eis aqui um disco discursivamente difícil de se ouvir e, moralmente, difícil de engolir. De posicionamento maduro, o Boneca Voo Doo exorta, com seu som, a verdade de que o conservadorismo está em ruínas em meio ao embate de céu e inferno.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.