Mang - Os Loucos Anos 20 - Vol. I

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No início do segundo trimestre do ano, a banda Mang, oriunda de Florianópolis, faz o nascimento do projeto intitulado Os Loucos Anos 20, um programa que consiste no lançamento de um álbum, mas dividido em três EPs com lançamentos espaçados ao longo de 2025. Seu primeiro capítulo, Os Loucos Anos 20 - Vol. I, se vende como a etapa inicial desse testemunho reflexivo do grupo acerca da nova década.


É como ser agraciado pela temperatura morna de um Sol poente em pleno entardecer de verão em uma praia tropical. Sentindo, ao mesmo tempo, o frescor da brisa e ouvindo o som do mar, o senso de leveza e despreocupação abraça o indivíduo de imediato. E a maneira com que a guitarra base de Lucas Thys se movimenta, macia, swingada e rebolante, sintetiza essas sensibilidades através de melodia, moldando um ecossistema aconchegantemente convidativo e gentilmente dançante. Com direito a rompantes delicadamente ácidos expostos pela guitarra solo de Pedro Germer, a composição logo se permite fluir para o primeiro verso, instante em que mantém sua regência estrutural baseada no samba. É aqui que Thys entra em cena com sua voz delicada, intermediária e afinada em um tom semelhante àquele de Marcello Ribeiro. Por meio de sua interpretação lírica e da cadência de suas palavras, o cantor explora uma intersecção sensorial propositadamente destoante com aquela do instrumental. Afinal, enquanto por um lado o ouvinte tem acesso à leveza e à descontração, por outro, é possível interagir com ímpetos de uma nascente melancolia em meio a uma postura puramente observadora. Continuando com seu minimalismo estrutural serenamente requebrado, a composição permite a contribuição também do baixo de Tomás Marchioro no escopo sonoro, proporcionando, a ele, consistência e precisão. Surpreendentemente se tornando ruidosa e extravasando uma acidez como forma de exortar uma absurdez latente, a faixa tem, na figura da guitarra solo e seus relâmpagos de natureza sombria, o elemento que fornece um turning point de aspecto teatral ao seu enredo. Importante destacar que, nesse ínterim, a bateria de essência firme, assume, ao comando de Gustavo Grillo, a função de fator-consciente e, portanto, racional, da sonoridade da obra. Assim, À Flor Da Pele traz em si um conteúdo lírico cheio de significâncias de origem introspectiva. Afinal, ao mesmo tempo que explora a ausência e a carência do senso de pertencimento, ela escancara, também, a falta de motivação, além do desconforto perante um comportamento robótico dominado pela rotina. É aí que entra em ebulição um desconforto que, rapidamente, se torna impulsividade, inquietude e, inclusive, irritabilidade. Eis aqui o retrato de um indivíduo perdido em um mundo em que a esperança não existe e a mudança é, apenas, uma ideia utópica.


Aqui, a introdução assume uma essência mais branda. Introspectiva, ela se desenvolve através de um mecanismo minimalista fresco em sua melancolia visceral e entorpecente. A cada brisa que vem do horizonte, o indivíduo é abraçado pela desmotivação e por um curioso incentivo a uma espécie de autodesvalorização. Se ausentando da percepção de vivacidade e equalização energética que o Sol e seu esplendor podem fornecer, o indivíduo se percebe, cada vez mais, imerso em seu próprio universo depreciativo de natureza ludibriante, uma vez que o conforto dele transpirado oferece uma falsa noção de proteção e bem-estar. Repetindo a receita da canção anterior, aqui, o responsável por criar uma dicotomia sensorial é o enredo percussivo. Isso acontece porque a bateria, em companhia com o tilintar compassado do triângulo, cria uma cadência baseada na paisagem do xote, o que tenta sustentar uma espécie de leveza que, infelizmente, é engolida pela guitarra ácia e suspirante e por uma linha lírica que se mostra em cena como um olhar divagante e desorientado. Estruturalmente sofredora, é interessante perceber as diferentes nuances que cada instrumento entrega ao ambiente. Entre pulsos firmes e sincopados da bateria, o ouvinte se perde em meio a um baixo concisamente swingado e guitarras que se completam entre torpor e um falso estado de alívio. Transitando entre uma nostalgia melancólica emaranhada em morfina, Cavaleiro De Papel começa explorando o senso autodepreciativo e aconchegado na ideia de desilusão. De natureza poética, experimentações psicodélicas e incursões instrumentalmente progressivas a ponto de alcançar picos de dramaticidade, a canção estuda, simplesmente, a vulnerabilidade e o máximo estado de fragilidade que molda o cerne do ser humano quando colocado perante uma experiência traumática que, aqui, especificamente, aparenta beirar o desamor. 


A guitarra solo se apresenta sob uma desenvoltura que destaca uma afinação distorcida solar. Conferindo, portanto, um senso enérgico na atmosfera, o instrumento permite que o vocalista vivencie, ao menos minimamente, uma leveza que o permite mergulhar em singelas frestas de alegria. Em verdade, porém, a interpretação lírica por Thys assumida confere uma noção reflexiva que abraça, com generosidade, o cenário conjuntural da obra. Explodindo em um instrumental de essência entorpecente, mas protagonizado pelo sonar de natureza opaca e tilintante do cowbell, o que confere uma autenticidade e excentricidade em meio à exploração de um regionalismo tão denso quanto aquele vivenciado em Cavaleiro De Papel. Ritmicamente se aventurando por variações entre xaxado e forró, o que sustenta a ideia de regionalismo, a faixa se baseia em um lirismo penetrante que convida o espectador a assumir um comportamento pensativo. Isso acontece porque, em Os Jovens Que Tanto Demoram, o Mang estuda e expõe sua visão a respeito da desigualdade social, da luta de classes e do grande vão que separa abastados de miseráveis. Ainda que dialogue, também, sobre censura, é inevitável a percepção de que a faixa se centra na ideia econômica, garantindo, como recado final, um ideal utópico de igualdade.


Aqui mora um estudo sócio-comportamental. Um aprofundamento de visão de mundo influenciado pela filosofia. A arte do pensar regida pela reflexão. Sem agressividade ou brutalidade, Os Loucos Anos 20 - Vol. I explora esses quesitos de maneira branda, evidenciando, aqui, a capacidade do Mang em misturar enredos rítmico-melódicos contagiantes com lirismos que pedem por certo grau de maturidade para ser entendida em sua máxima essência.


Apesar de curto, o EP não peca, em hipótese alguma, no oferecimento de densidade, precisão e consistência. Se valendo, inclusive, por uma versatilidade confiante, o material convida o ouvinte a caminhar livremente entre terrenos estruturais que permitem o vislumbre do samba, do xote, do forró e, também, do xaxado.


Destacadas especialmente pelo andamento rítmico e pelo emprego de elementos percussivos excêntricos, essas nuances evidenciam, de certa forma, um bom trabalho de mixagem. Ainda que a atividade assumida por Misael Pacheco permita ao ouvinte a identificação clara de todos os instrumentos que constroem cada atmosfera sonora, ela peca, mesmo que suavemente, na exposição de uma crueza que não condiz com a proposta do material.


Presente exclusivamente nas linhas líricas, notada através de chiados quase inaudíveis, essa característica fornece uma brutalidade que, em certa medida, pode atrapalhar a noção de fluidez. Felizmente, porém, isso não acontece em demasia. Dessa forma, além do andamento macio, o ouvinte consegue, inclusive, sentir cada emoção proposta nos três títulos de Os Loucos Anos 20 - Vol. I.


De mérito dos músicos, os quais se mostram bastante competentes, o instrumental, em virtude de sua estrutura madura, permite ao espectador o mergulho sensorial em meio a emoções que podem ir da nostalgia à melancolia, passando, inclusive, por devaneios inconstantes. Tudo casando com as propostas líricas, as quais discutem, com gentileza, mas com equilibrada pungência, questões a respeito de pertencimento, autodesvalorização e a desigualdade social.


Fechando o escopo técnico, vem a arte de capa. Assinada por Artur Paz, ela traz um viés babilônico. Baseada na utilização de tons fluorescentes, ela é repleta de cenários particulares cuja estrutura mistura detalhes renascentistas e expressionistas por destacar ideias de pureza e eloquência. Compreendendo ilusões de ótica enquanto evidencia um rosto com uma figura em seus olhos que aparenta uma lágrima, o desenho compreende interpretações que, além de frágil, sugerem manipulação e torpor, experiências sensoriais que, invariavelmente, regem a vida contemporânea.


Lançado em 29 de abril de 2025 de maneira independente, Os Loucos Anos 20 - Vol. I é um retrato da sociedade atual sob poemas que encapsulam, com boa dose reflexiva, a realidade contemporânea. Da tristeza, passando pela experiência da nostalgia e, inclusive, do torpor, o EP convida o ouvinte a olhar para sua própria vida, buscando entender seu lugar de mundo, encontrar a sua voz e descobrir o que o move.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.