Mavi Veloso - Her Blossoming Delights

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Passados três anos do anúncio de Travesti Biológica, seu álbum de estreia, Mavi Veloso retoma os holofotes ao fazer um desdobramento de uma peça para algo puramente musical. Assim nasceu Her Blossoming Delights, seu primeiro EP. Nele, Mavi, inclusive, se encarregou de todas as funções, desde aquelas afrente do palco quanto aquelas da coxia.


O suspense paira livremente pelo ar. Ao mesmo tempo em que consegue deixar o ouvinte na experiência sensorial que beira o ápice da insegurança, a introdução consegue fazer com que uma sensualidade enigmática e embrionária vá construindo lapsos de uma curiosidade gradativamente crescente. Esse aspecto é o responsável por fazer nascer um caráter de expectativa capaz de, por um lado, afastar aquele temor inicial vivido pelo ouvinte. Pulsante, sintética e audaciosamente flertando com o fantasmagórico sob um viés pegajosamente entorpecente, a faixa rapidamente permite que seja preenchida por uma nascente camada lírica. Providenciada por uma voz grave de base aguda vinda de Mavi Veloso, ela se estrutura de maneira a soar como se estivesse, de fato, despertando. Mansa e acompanhada por contribuições rítmicas pontualmente palpitantes, ela se aventura por entre falsetes bem executados que levam à experimentação de texturas entorpecidamente sensuais. De paisagem estrutural um tanto crua, a faixa se mostra um produto electropop um tanto soturno cuja veia lírica que descreve uma vivência sensitiva guiada pelo puro estado amorfinante. O êxtase de um prazer sintético eleva o espírito por levá-lo a um lugar mágico que, aqui, se chama Rising.


O beat sincopado rapidamente leva o ouvinte a vivenciar uma estrutura rítmica rigidamente calcada no trap e seu universo urbano de brisas marginais. Com direito a sobrevoos de uma linha lírica inicialmente interpretada por um vocal editado de forma a soar excessivamente grave, a faixa acaba mantendo a experimentação sensorial entorpecente ofertada no título anterior. Por meio de sonares melodiosos regados à melancolia, Other Way é verbalmente estruturada de forma a combinar inglês e português em um diálogo que beira a ideia da negação sócio-moral de um indivíduo que, finalmente, se encontrou. O triste, aqui, é que, apesar de trazer ímpetos de coragem e empoderamento, a personagem lírica opta por corresponder à ignorância social e manter sua identidade moral e conservadoramente aceita com a intenção de, simplesmente, se poupar de possíveis e rascantes sofrimentos.


Enquanto a atmosfera é completamente engolida por uma energia lexicalmente atordoante e propositadamente enlouquecedora, é interessante de se observar a fluidez rítmica para com um viés carioca no que tange o oferecimento de uma essência funk melody. Ainda que ligeiramente dissonante e, assim como em Rising, fantasmagórica, a faixa explora uma veia amorfinadamente dançante em meio a uma paisagem sensorial melancólica que beira a loucura. Em DêLeite E Fracasso, uma espécie de alusão reinterpretativa de Mesmo Que Seja Eu, título creditado a Erasmo Carlos e interpretado por Marina Lima, Mavi, novamente, fornece o visceral, o rascante e o lancinante. Na forma de um poema autobiográfico que captura a dialética de um indivíduo em constante crise de identidade, a presente faixa é um recorte da convivência frequente de Mavi com seus dois pseudônimos. Entre o caos do desconforto e o êxtase do prazer do pertencimento. 


Por entre a adoção do autotune para inserir uma camada sensorial mais azeda por meio da sonorização ligeiramente estridente e digitalizada de seu timbre, Mavi explora uma espécie de sensualidade amaciada e despretensiosa no decorrer da introdução. Fluindo para uma atmosfera marcada por um frescor sintético e pulsos brandos, mas já capazes de inferir uma energia dançante, a canção acaba sendo marcada pela experimentação de uma ambiência, no mínimo, alucinante, em virtude da forma como a cantora constrói e interpreta o conteúdo lírico. De energia generosamente entorpecida e promovendo uma interação direta para com o rap em virtude da cadência lírica adotada, DLites, na forma de uma reinterpretação suavemente glorificante de Jardim Das Delícias, faixa creditada à Cláudia Wonder, vem como uma exortação ao empoderamento, ao equilíbrio emocional, ao senso de persistência. Resiliência. Ao foco no desejo e nos objetivos. Ao mesmo tempo, a presente sintetiza muito bem o intuito central do EP que é, simplesmente, a exortação da feminilidade.


Ele pode até ser um EP curto, mas, definitivamente, seus dizeres são amplos. Não há a necessidade do grito. Seu tom de voz já é um protesto. Também, não é preciso apelação. Seus movimentos já são sensuais. Her Blossoming Delights é um material em que Mavi Veloso exorta não apenas a sua musicalidade, mas, uma vez mais, ela arregimenta seu grau de influência no especto da música LGBTQIA+.


Sempre provando texturas que vão da delicadeza ao pulso, neste presente material há muito mais experimentação em relação ao seu conteúdo anterior. Transitando entre o funk melody, nuances de trap e incursões de rap, a artista consegue se infiltrar no ambiente urbano enquanto se aventura, inclusive, entre ímpetos de melancolia e impulsos que beiram um nascente drama.


Porém, aqui não há espaço para autopiedade. Não existe brecha para o sofrimento e para a exortação da fragilidade. Ainda que o mundo, em especial o Brasil, ainda esteja distante do alcance da construção de uma sociedade livre de preconceitos e de intolerâncias, quando existe uma voz que enfrenta esses dilemas, várias outras surgem e fortalecem qualquer movimento.


Em Her Blossoming Delights, o movimento em questão é a exortação da feminilidade. Ainda assim, é inevitável a percepção de lirismos de veias autobiográficas pungentes em que Mavi apresenta suas próprias vivências, seus próprios dilemas e, consequentemente, suas próprias dores. Porém, ela não se deixa abalar e, por mais que as lágrimas possam cair, seus olhos transpiram confiança e empoderamento. O enfrentamento do conservadorismo não é sugestão. É lei.


Como um EP feito a apenas uma mão, ele até ilustra boa capacidade de Mavi no âmbito da produção e da composição, sendo que, em relação a esse último aspecto, a cantora se aventurou nas mesclas entre os idiomas português e inglês, mostrando certa ância por internacionalização. Alguns escorregões podem ser observados na mixagem ao deixar certos instantes com um som demasiadamente cru, mas, felizmente, esse detalhe não interfere na experiência sensorial do ouvinte. 


No que tange a arte de capa, Mavi Veloso, talvez inconscientemente, talvez não, bebeu da mesma base do encarte de Travesti Biológica. Com seu corpo nu em evidência embebido em um olhar frágil, mas sensual, a fotografia que adorna o presente material defende redondamente o mote central do EP: a força do feminino.


Lançado em 30 de maio de 2025, Her Blossoming Delights é fragilidade. É insegurança. É sinceridade, mas também é força. Persistência. Certeza. Empoderamento. Não existe poder suficiente para derrubar aqueles conscientes de seu valor. A autoconfiança afugenta os fracos que tentam diminuir outros potencialmente vulneráveis. Mavi Veloso dá um basta a esse ciclo e oferece, com o EP, uma representatividade humana, mas cheia de compaixão e senso de propósito.

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Sobre o crítico musical

Diego Pinheiro

Quase que despretensiosamente, começou a escrever críticas sobre músicas. 


Apaixonado e estudioso do Rock, transita pelos diversos gêneros musicais com muita versatilidade.


Requisitado por grandes gravadoras como Warner Music, Som Livre e Sony Music, Diego Pinheiro também iniciou carreira internacional escrevendo sobre bandas estrangeiras.